quinta-feira, 18 de maio de 2017

play

Desta vez quis trazer um Play ligeiramente diferente do habitual. Não há filmes comerciais nem nenhum filme que vou falar hoje é para todos os gostos. Não o são. Mas já lá vamos. Têm uma coisa em comum: nenhum é de língua inglesa.

Dos quatro filmes que vou falar, 3 deles foram vistos no cinema e apenas o primeiro, visto na televisão.

Portanto, este vai ser um Play muito internacional. É também importante conhecermos coisas novas, diferentes e sairmos um bocadinho da nossa zona de conforto, certo? Vamos a isso?

Mustang (7,7 IMDb)
Língua: Turca
Falaram-me bem do filme e eu já tinha ouvido falar dele. Esteve nomeado para Melhor Filme Estrangeiro nos Oscars do ano passado, se não me engano. Num dia qualquer apanhei-o num dos canais do TVCine. Puxei para trás e vi-o.

Gostei muito. Gostei da leveza com que abordaram assuntos tão sérios e dramáticos como a descriminação, a falsa moral, o machismo e a ditadura e as suas eventuais consequências.

Mustang conta a história de cinco irmãs turcas que são livres, inocentes e felizes. Por uma infeliz coincidência, foram apanhadas com colegas rapazes a brincar no caminho da escola para casa. A mentalidade de quem assistiu às brincadeiras distorceu toda aquela situação, causando danos reais na vida daquelas cinco crianças e adolescentes. Estas foram trancadas em casa, praticamente sem contacto com o exterior, e obrigadas a aprender as lides domésticas como uma boa "esposa" e "dona de casa" deve ser. Daí até às promessas de casamento com famílias vizinhas não tardou muito. As raparigas viam cada vez mais as suas vidas a serem roubadas e manipuladas sem que conseguissem fazer muito para o mudar. As consequências não tardaram.

O filme conta sempre os acontecimentos da perspetiva delas, de forma inocente e quase despropositada, sem nos mostrar as reais intenções dos "adultos" ou as reais consequências daquelas ações. Nunca sabemos "a história toda", porque elas também não o sabem, mas conseguimos imaginar o que vem por aí.

Vejam este filme. Vale a pena.


Na Via Láctea (7 IMDb)
Língua: Sérvia
E agora voltamos para algo completamente diferente. Porquê? Porque é um filme de e com Kusturica. Já perceberam? Vi o filme no grande ecrã e foi uma honra, até porque dizem que este será a última obra deste realizador que agora se dedica à agricultura biológica. Todo o filme é falado em servo e é como se tomássemos uma injeção de adrenalina. O filme corre, a nossa respiração não sossega e tudo é mensagem, tudo é cenário pensado e natural ao mesmo tempo... Fiquei extasiada.

Começou mal, com uma cena que para mim que não aguento ver mortes de animais, me fez tapar os olhos com as mãos e abstrair-me do som. Comecei a ponderar se fiz bem em ir ao cinema ver aquele filme. Deixei correr e, claro, melhorou muito. 

Kusturica tem uma forma muito própria de contar as suas histórias, tem uma forma especifica de construir personagens, significados e bandas sonoras arrebatadoras. Tudo é tão caótico e tudo é tão harmonioso que nós ficamos de boca aberta sem saber bem como é que estamos a sentir tudo aquilo ao mesmo tempo. Bom, mas a história é simples. No meio da guerra da Bósnia um leiteiro apaixona-se por uma fugitiva que já estava de casamento marcado, comprometida, mas com o avançar da guerra, acabam por fugir juntos e, inevitavelmente, começa a caça aos fugitivos. Mas no meio de tudo isto, existem personagens maravilhosas, estranhas, divertidas que nos fazem temer e rir.

Podemos dizer que o filme se divide em três fases: o antes, o durante e o depois ou o nascimento, a vida e a morte... Cada uma delas, completamente diferentes entre si. A primeira fase mostra-nos Kusturica, que interpreta o papel do leiteiro que abastece as tropas, que tem uma vida muito tranquila, pacata, sem medo de morrer, porque não tem mais nada a perder. Não há nada que o entusiasme na vida nem nada a que ele se apegue. Está ali só à espera de morrer. Vemos que em cenário de guerra, continua a deslocar-se com os seus companheiros de viagem (um burro e uma ave) e protege-se das balas e das derrocadas com um guarda-chuva.

A segunda fase, descreve-nos o momento em que, ao ir a uma quinta abastecer-se de leite, conhece a bela italiana, interpretada pela Monica Bellucci. Nesta etapa, está a reaprender a gostar de viver, a amar e a celebrar a vida. É também a parte mais caótica, cheia de música, de festas, de amor também. Há o "vai-que-não-vai" normal de início de relação (principalmente uma proibida como aquela) mas há atração e faísca e tudo muito normal, ou não...

Já numa fase final, depois de conseguirem escapar juntos e com vida mas a serem perseguidos pelos soldados inimigos, desencadeiam-se cenas maravilhosas da fuga, da caça, da perseguição aos dois apaixonados. Há planos muito cénicos, cheios de significado, bonitos mesmo, um consolo para a vista. Depois há o final que é arrebatador. Mesmo!

Todo o filme é uma pequena obra de arte, cheia de energia, cheia de mensagens escondidas, de misticismo e de significações ou metáforas. Dá gosto ver filmes assim. Diferentes mas irreverentes, loucos e com muita qualidade.

Se é para todos os gostos? Não. Acredito que haja quem não consiga ver sequer 30 minutos do filme. Mas para os que conseguirem, vão ver que vale a pena cada segundo...


São Jorge (7,1 IMDb)
Língua: Portuguesa
A grande promessa portuguesa. E o sururu à volta deste filme? Estava mesmo muito curiosa para saber se era tudo fachada ou se aqueles elogios todos eram merecidos. Segundo a minha modesta opinião - de quem não é crítica de cinema e pouco percebe disto - é que o filme é morno.

Primeiro, os conceitos que nos apresentam o filme são a Troika e o mundo do boxe. Nenhum deles tem qualquer destaque no decorrer da história. O bairro da Bela Vista é o principal cenário, onde habita o protagonista e toda a sua família. O mesmo com o bairro Jamaica. A realidade que nos é apresentada naquelas cenas à mesa, por exemplo, não é diferente do que se passa hoje, a esta hora. Não houve Troika que melhorasse ou piorasse a situação daquelas pessoas que, na sua maioria, têm e sempre tiveram empregos precários e que vivem, muitas vezes, à custa da Segurança Social. Não conseguimos compreender o real impacto que a austeridade teve no nosso país quando falamos de meios onde ela nunca deixou de existir. Relativamente às conversas que têm à mesa, pelos diversos intervenientes, não são mais do que frases soltas, ideias aleatórias que apesar de serem reais, não são integradas no discurso do filme, não há solidez nos conceitos nem no diálogo. Fica tudo muito disperso, muito superficial e muito senso comum. Não fiquei impressionada com o guião - na verdade, fiquei bastante desiludida. Quanto ao boxe, quase que me ri. Esqueçam. Não vão ver lutas nem nada que se pareça. Há uma breve introdução ao ambiente onde o protagonista se insere e pouco mais. Ter ali a referência ao boxe e não ter nada ia dar ao mesmo - tal como a referência à troika.

Depois tenho que falar do som. É bastante mauzinho. Há frases que não se percebem e não tem que ver com a dicção dos atores. Também não tem que ver comigo porque eu fui ver o filme ao cinema.

A história é muito básica, muito vulgar. Isso não é necessariamente um aspeto negativo. No entanto, não me parece que tenham pegado nela de uma forma inovadora ou, pelo menos, interessante. Há momentos mortos, há cenas que nada acrescentam ao enredo e o filme torna-se muito longo e, por vezes, aborrecido. E pior! Quando achamos que vai acontecer alguma coisa que vai mudar o rumo da história - o clímax - percebemos que não há nada para além daquilo. Nada. Não há ponto de viragem. 

Os planos são repetitivos (o Jorge lava a nuca, os ombros e as costas umas 20 vezes durante o filme) e, por vezes, demorados demais. Há a intenção de terem planos super indie mas que, na realidade, são aborrecidos e não encaixam. Não me interpretem mal, eu não estou a desancar em São Jorge porque esperava um filme hollywoodesco e cheio de ação e efeitos especiais. Nada disso, eu sabia ao que ia. Mas há filmes parados e filmes parados e eu acho que o cinema português ainda é muito abstrato, ainda é muito elitista e cheio de manias. Porquê? Porque percebe-se que o realizador e equipa pretendiam que houvesse um processo de atribuição de significados por parte do espectador (supê indie, e supê inteligente) mas para isso é preciso criar um conceito sólido, uma história com princípio-meio-fim, e que existam, na verdade, simbolismos escondidos e não pseudo-mensagens.

Mas nem tudo é mau, calma. As interpretações são muito boas. Mesmo! O Nuno Lopes (Jorge) faz um papel incrível, que fala só com as expressões - porque diálogo é raro e quando existe é básico - fala com os olhos, com o corpo, com tudo. E é preciso sublinhar a interpretação INCRÍVEL do David Semedo (Nélson). Ainda vamos ouvir falar deste miúdo...

Depois tenho que realçar os cenários, os acessórios escolhidos, as roupas, a toalha de limpar o corpo depois do banho, a loiça do almoço, o esparguete com salsichas... Tudo tão real, tão genuíno que impressiona.

Há também bons planos e cenas muito poderosas. Vale a pena ver, mas não vão cheios de expectativas como eu fui. Acho que vão ficar desiludidos.


O Vendedor (8 IMDb)
Língua: Persa
Este filme foi o vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro deste ano. Ia com expectativas altas, mas acabou por me surpreender. Tem uma história simples mas complexa no seu significado e no seu contexto, os atores são ma-ra-vi-lho-sos! Mesmo incríveis! Era tudo tão genuíno e sentido que nem pareciam que estavam a representar, e isso é o maior elogio que lhes podia dar.

A história conta a relação de um jovem casal de atores, que mudam de casa e, numa noite, enquanto esperava pelo marido, é assaltada e violada por um estranho no seu próprio lar. O filme desenrola-se a partir daí: o que fazer? O que é esperado do marido? Como é que a esposa vai reagir? Se optarem por ignorar, será que vão conseguir viver com essa decisão o resto da vida? E se decidirem fazer queixa? O que vai acontecer? Que medidas vão ser tomadas? Como é que vão continuar a viver a vida deles com normalidade? E os vizinhos?

E se... E se... E se...

O filme é muito interessante, é intenso e tranquilo ao mesmo tempo e, quando chega ao ponto alto, chega a ser desconcertante. É tão cru, tão honesto, tão genuíno que é impossível não nos pormos naquela situação, ali mesmo, junto àquelas paredes abandonadas a assistir à cena. Ali vemos a raça humana na sua natureza mais crua e nua.

Já viram o filme O Segredo dos meus Olhos? Mas o espanhol, não o americano-horrível-que-anda-por-aí. É a mesma linguagem, um drama semelhante, as mesmas condicionantes, os mesmos medos. Dois filmes incríveis que devem mesmo ver. Mesmo!


Sticky&Raw
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